O velório dos clubes

A venda de parte do terreno de dois clubes da Ponta da Praia para empresas do ramo imobiliário provoca uma mistura de nostalgia e ansiedade com a constatação de que a mentalidade de um período chega às vias de ser extinta.

A cidade alterou seu desenho geográfico, o comportamento dos moradores é outro, mas os dirigentes das agremiações permaneceram – pelas indicações do próprio patrimônio dos clubes – no século anterior.

Não é a verticalização de Santos que matou alguns clubes da cidade. O processo de mudança urbanística apenas fechou a tampa do caixão de um defunto morto há anos, que aguardava o ritual fúnebre. Com exceção do Internacional, no mesmo bairro, e de outras três ou quatro entidades esportivas, os clubes se transformaram em elefantes brancos, mendigam por novos sócios, sem apoio para manter modalidades esportivas e pouco presentes na vida cultural do município.

Ao passar pela avenida da praia, sinto perder parte de minha adolescência na degradação dos clubes. O Regatas Santista, marcado por um show com mortes, virou um arranhão na vista para o mar, sujo e cinza. Da cor de quem sofre de doença terminal. Ali, foram anos de bailes de carnaval, local onde arranjei minha primeira namorada séria. O critério “séria” significa longa duração, conhecer a família e assim por diante, dentro do código machista. O Regatas havia sido negociado, mas a venda foi cancelada pela Justiça.

Ao lado, o Vasco da Gama, sem as luzes e o movimento de todas as noites, temperados por vezes pelo sotaque deliciosamente português. Um prédio escuro, silencioso, agarrado nas glórias de um passado repleto de medalhas e troféus. Ali, passei dois anos de minha vida, como goleiro do time de futsal. Viagens, torneios, churrascos, contusões, tudo remonta ao velho reduto português. No Vasco, vi Rita Lee cantar em playback, numa fase difícil da rainha.

O Saldanha da Gama foi o último a baixar as armas. Vendeu parte do patrimônio. Pretende pagar as dívidas, acertar a vida fiscal e se adaptar aos tempos atuais, com novos atrativos para os associados. O Saldanha é um amigo freqüente. Joguei dois anos futsal pelo clube. Em 1990, o time infanto-juvenil, do qual fazia parte, ganhou tudo em Santos. Os campeonatos no campo do fundo sempre foram melhores do que muitas partidas na várzea. Tenho como recordação a camisa do Bangu – não o carioca -, mas um dos participantes do torneio interno do clube.



Ali, também disputei – aos 18 anos – longas partidas de tênis com meu amigo Paulo Coelho (óbvio que não se trata do escritor). Sempre perdia, mas o que valia era castigar a bolinha com a raquete. Recentemente, vi duas apresentações de minha filha na festa de final de ano da escola. No final de 2008, ao ver um ensaio no salão do Saldanha, percebi com ele virara um gigante adormecido, sem movimento nas quadras, com a piscina quase vazia. Não ouvia bolas quicando, gritos nas quadras ou corpos na água. O silêncio ganhava de goleada.

Os clubes, por meio de muitos dirigentes, não notaram que a paisagem mudou. Shoppings vieram, cinemas saíram dos bairros e outros hábitos paulistanos de consumo foram introjetados. Famílias, atualmente, passam os finais de semana internadas em shoppings, onde comem, bebem, se divertem e, principalmente, torram dinheiro. Deixaram os clubes como o ponto de encontro para o almoço de domingo.

O Carnaval, fonte de renda garantida, ganhou novo perfil. A maior parte dos bailes de salão esvaziou. Morreram junto com a Dona Dorotéia. As bandas incharam. As baladas na praia cresceram. Até a tribo dos inimigos dos tamborins se multiplicou na fuga para recantos em outros endereços.

Os clubes eram ponto de referência na vida noturna, com bailes e shows. Cheguei a ver, antes da tragédia dos Raimundos, show de um cantor romântico (entendo como brega) no Regatas Santista, para agradar uma namorada. O calendário de apresentações durava o ano todo.



Hoje, casas noturnas monopolizam as apresentações das estrelas consagradas, das celebridades instantâneas e dos guetos musicais. Vivem lotadas, conhecem o caminho do showbusiness e procriam pelo litoral. Os clubes seguem em silêncio nas noites de sábado. Salvo festas bem específicas.

Outros elefantes brancos tornam a paisagem sombria, como o Atlético Santista, que também acende minha saudade. O clube se manteve vivo ao longo da última década com o aluguel do salão, abrigando carros e feiras, entre outras atividades terceirizadas, o que me parece insuficiente para retomar uma rotina esportiva e cultural.

A expansão imobiliária é um fenômeno que, mais do que alterar a paisagem, sacudiu a infra-estrutura da cidade de Santos. Os espigões terão influências econômicas, ambientais, políticas e sociais. Parte das conseqüências cabe o Estado administrar, evitar e resolver, como trânsito, abastecimento de água, rede de esgoto etc. No lugar de ginásios, quadras e campos, a orla perto do canal 7 terá quatro edifícios de 30 andares, segundo a imprensa local.

Para sobreviver, os clubes – com dinheiro no bolso – tem que notar e decidir se incorporam ou ignoram a visão de mundo que acompanha o novo desenho do município. Perceber quem é o novo morador, inclusive os vizinhos dos espigões - ou os comportamentos contemporâneos dos residentes atuais. Diagnosticar as falhas, propor estratégias, criar fontes de renda, aproximar-se das comunidades e profissionalizar a relação com os sócios.

Se optarem por seguir na trilha dos últimos anos, a tendência é que estas agremiações sejam o ponto de encontro de velhos. Não falo de idade, e sim de velhas mentalidades. Ideias mortas!

Entender o que acontece em volta é abrir as portas sem vender a alma. Aproveitar a redução para crescer, como formadores esportivos e centros de manifestação cultural. Caso contrário, os clubes continuarão pequenos, desta vez com a geografia menor, sem o milagre da ressurreição.

Comentários

Wilson Roberto disse…
Realmente, passar na porta dos falecidos clubes, dói. Passei praticamnte toda a minha infância no Regatas, jogando bola, pegando balieira com meu pai e irmão e remando até a praia do Goes ou até 'o outro lado do Saldanha'.
Lamentável a situação atual, fica a curiosidade do que vai acontecer com os 'escombros' e o saudosismo.
ortsiger disse…
Perfeito seu post.
Na minha infância, pulei carnaval no Clube XV (hoje um hotel/flat).
Joguei bola e tênis no Santista.
Fui a shows no Caiçara.
Trabalhei entre 96 e 98 no Clube Sírio Libanês.
É triste ver a decadência e falta de opções.
É triste ver uma cidade que tem tanta glória nos esportes de quadra, largado !
Não seria bom um campeonato entre clubes, transmitido pela Tv Tribuna, VTV ou SBT, com apoio dos terminais, emrpesas de Santos e região ?
Um Inter Clubes de Santos e região, com basquete, handball, futebol, volei, tamboreu, futsal ?
Não seria um fôlego para os clubes, infiltrarem seus nomes no esporte pelo menos ?