As perdas

Alice tem 50 anos, é psicóloga-pesquisadora na Universidade de Harvard, no Estados Unidos. Casou-se com um cientista, com quem teve três filhos. Vive entre aulas, viagens internacionais para conferências e elaboração de textos científicos. È conhecida, no meio acadêmico, não apenas pela qualidade de suas pesquisas, mas também pela memória infalível para citar dados e trabalhos na sua área.

Joan Didion também é norte-americana. Escritora renomada, é casada com outro autor literário, com quem teve uma filha, hoje na casa dos 30 anos, como os filhos de Alice. Possui uma vida estável, que permite a ela escrever em tempo integral, sem se preocupar com outras atividades profissionais.

Alice começou a ter problemas de esquecimento. Não se lembrava onde deixara o carregador de celular. Ao correr no parque, não conseguiu – por alguns minutos – organizar o caminho de volta para casa. Perdeu uma viagem de avião. Entrou em sala de aula e não sabia qual conteúdo dar aos estudantes, o tema que havia preparado até uma hora antes.

Joan e o marido passaram a frequentar hospitais. A filha, Quintana, teve um choque séptico e estava em coma. Antes, teve pneumonia. Uma rotina desagradável de visita e de incertezas diante da recuperação da filha.

Alice enfrentou uma série de exames que, inicialmente, não apontaram problemas neurológicos. Os lapsos de memória se tornaram mais frequentes, fato que escondia da família e dos amigos. Após dois meses, o diagnóstico médico: Mal de Alzheimer, em nível precoce para uma mulher de 50 anos.

Joan retornou uma noite com o marido do hospital. A filha ainda inconsciente. Enquanto preparava o jantar, John permanecia na sala. Conversavam. Ela comentou algo. Ele se calou. Um ataque cardíaco matou John, aos 71 anos, naquela noite, de maneira fulminante.

A psicóloga com Alzheimer é o personagem principal do romance “Para Sempre Alice” (Ed. Nova Fronteira), livro de estréia da neurologista norte-americana Lisa Genova (na foto abaixo).




Joan Didion não é uma personagem. Ele é a autora do livro “O ano do pensamento mágico”(Ed.Nova Fronteira), em que relata o ano posterior à morte do marido.

Ambas as obras falam sobre perdas e mudanças provocadas por essa situação. Por que temos dificuldades para lidar com as perdas definitivas, não apenas a morte? No romance, Alice precisa se reinventar e compreender que não poderia mais fazer planos de longo prazo. Seria obrigada a vivenciar o presente, aproveitar os detalhes de cada encontro, de cada ocasião, com a consciência de que se perderiam na ausência gradativa de memória recente.

Alice – e seus familiares – e temiam perdê-la, perdê-la pelo fim da identidade. Como ela poderia ser Alice se se tornaria alguém incapaz do auto-reconhecimento? Como os outros conseguiriam absorver a ideia de que Alice se transformaria em uma caricatura de si mesma, temor em forma de negação do marido dela? Ou seria uma nova Alice, com a essência original?

Joan (na foto abaixo) teve a pior das perdas, medo que permeia todas as culturas: a morte do mais próximo. Como se lida com ela? Como descobrir o momento em que se cai a ficha, na expressão popular? Como reconstruir o cotidiano sem alguém que te acompanhou por três décadas? Como encarar a si mesmo e enfrentar os sentimentos que restaram, sem o outro para recebê-los?




A maneira de se encarar uma perda é absolutamente individual. Depende do ritmo próprio da pessoa, como ela absorve o fato, por quanto tempo negará a frustração extrema. Penso que superamos a perda somente quando temos claramente uma perspectiva de vida. Ou quando a retomamos. Algo a ser planejado, visto, desejado, mesmo que somente para o dia seguinte, para o próximo final de semana.



A perda nos retira o desejo. Desejo de ver o outro e a si, de conviver, de cumprir as convenções sociais, de transgredí-las. Perder nos retira a referência, arranca certos pontos de apoio para acompanhar uma rotina. É necessário tempo para se erguer novos alicerces sentimentais, sociais, afetivos. Tempo sem cronômetro, sem hora marcada. Tempo que sabemos que passou apenas … quando passou.

Talvez aí esteja a maior questão. Os tempos atuais exigem velocidade em todos os níveis. Velocidade para deixar algo ou alguém para trás, mesmo que o assunto ainda não esteja solucionado ou digerido. A pressão se manifesta por meio da falsa necessidade – muitas vezes distorcida como desejo alheio – de parecer feliz, de aparentar um estado de auto-estima elevada.

Alguns teóricos do mundo contemporâneo chamam este comportamento de felicidade full-time. Ou seria a ilusória morte da melancolia? Isso significa que o sujeito não pode ter o tempo próprio da absorção, da transformação e da superação da perda.

Neste sentido, amigos, colegas, conhecidos em geral – diria involuntariamente – criam mecanismos, que viram cobranças, para que o sujeito supere a perda. Uma amiga minha, por exemplo, levou cinco meses para superar a morte do pai. Além da dor inerente ao fato, ela tinha que administrar a insistência e a agressividade de amigos e parentes que desejavam tirá-la de casa a qualquer custo. Um cinema ou uma mesa de bar, a revelia de quem sofre, servem para apagar a frustração extrema da morte?

O tempo próprio para entender uma perda é soberano. A tendência é que se criem instrumentos seus – e apenas seus – de entendimento do processo e sobre como ultrapassá-lo (aliás, fator que não surge no momento posterior à perda de alguém ou de si, como a personagem Alice).

Só que o tempo atual não é o tempo individual. É o tempo do coletivo circunstancial, em que as relações sociais esmagam, atropelam a vida individual – principalmente norteadas pelo mundo do trabalho (somos medidos pelas nossas profissões ou empregos). Pode parecer contraditório – e é – em uma época de prevalência do individualismo, da valorização do eu mesmo.

A contradição aparente se desnuda quando pensamos na perda. É neste momento que o individual indica a vontade de se fazer visível e reconhecido pelo coletivo. Este mesmo coletivo que nos garante segurança e posição social no cotidiano. Tenho a sensação de que o tempo individual – com a tendência de destoar da reação coletiva, sem conexão direta com a perda – ganha contornos de empecilho para os relacionamentos.

A tradução seria – de maneira involuntária – colocar o sujeito no rumo anterior, de busca pela felicidade, ignorando o tempo próprio de luto dele, de digestão do desfecho de uma história sem novos episódios.



Alice e Joan criaram, na ficção e no relato, formas próprias de superar derrotas e de criar estratégias de mudança. Cada qual a seu tempo, cada qual independente – mas com a colaboração dos que compreenderam. Ambas perceberam e me ensinaram que a perda é a hora da avaliação, o momento de se adaptar ao novo, trocando pouco a pouco a lamentação pela perspectiva de uma janela nova, com outros valores, outras contradições, outros sentimentos, outras pessoas.

Avaliar, nas entrelinhas dos dois livros, não é corrigir. Somente corrigir pode paralisar, pois não representa garantia de outra trajetória. Não assegura evolução. Não aponta o caminho correto, do livre arbítrio. Avaliar é entender. Compreender o que precisa ser deixado para trás – e lembrado eventualmente com afeto – e o que se desenha como investimento de uma nova rotina, de novos desejos e até de novas perdas.

Comentários