Os urubus de gravata

A cena deu enjôo, ânsia de vômito. Era o sintoma de uma tragédia conhecida por todos, de duração secular. Os urubus revoaram agitados quando sentiram cheiro de morte. Alegres, radiantes com a carniça à disposição. A carniça somos nós, digeridos lentamente, ao som do hino nacional e a justificativa cínica da falsa cidadania.

Os urubus vestem ternos caros. Usam gravatas importadas. Vestem a roupa da missa para vender a ideia de participação política. É claro que há participação. O público que se rende ao privado. O jeito de se articular e se esforçar em prol de si e seus pares. O plenário da Câmara dos Deputados, geralmente vazio porque os atores precisam encenar suas farsas em currais, lotou para ver os parlamentares aprovarem a criação de quase 8 mil novas vagas para vereadores.



Nas galerias, braços levantados, punhos cerrados, urros de felicidade, hino nacional cantado com furor. A festa foi digna das arenas romanas. Pão, circo, pompa, circunstância, hino nacional, grito de cidadania, interesse público como o auge da República. Nós, à revelia, paramos no centro da arena para deleite dos leões, que aprovaram a proposta de inchaço nas Câmaras. Os urubus, nas galerias, salivavam pelas ossadas.

A cena – digna de Sucupira - jamais seria descrita por Dias Gomes em qualquer uma de suas obras. A vergonha da semana passada é vanguarda demais para um escritor. Como me disse certa vez o escritor José Roberto Torero, a realidade sempre supera a capacidade do ficcionista.

A maioria dos torcedores inflamados do plenário estava na busca por um empregão. Ser vereador não é apenas uma atividade política. É a garantia por quatro anos de portas abertas, bons relacionamentos, privilégios e salários para si e toda a família. Depende do nível de cara de pau do sujeito que ocupa a cadeira estofada e o ambiente climatizado do gabinete.

Neste trabalho, as segundas e sextas compõem o final de semana prolongado. O plenário é arena morta, fruto de um desinteresse público ou a desculpa oficial de conversar com as bases, um corpo disforme que vaga na mente dos legisladores e bajuladores contratados.



O Congresso Nacional, símbolo maior em todos os sentidos, é uma cidade curiosa. Dá vergonha! Ali, no espetáculo da política, pouca gente se interessa pelo acontece no palco. A dança teatral acontece pelos corredores, gabinetes, saguões. O jogo de cena é peculiar entre jornalistas, assessores e políticos. Valem declarações fortes, documentos que caem no colo dos inimigos, flertes e bravatas de assuntos que, por vezes, não interessam a mais do que meia dúzia de burocratas ou encostados nas tetas da Mãe Legislativa.

E pensar que o plenário já esteve lotado em ocasiões especiais. Históricas. Constituinte, impeachment do então presidente Fernando Collor. Hoje, o Legislativo se arrasta de escândalo em escândalo e sobrevive às custas da baixa politização e nosso desinteresse pelas atividades públicas, da promiscuidade com outros poderes, de uma parcela da imprensa covarde e servil. Aquele que foi expulso volta “nos braços do povo” – para usar um clichê do linguajar urubulino -, com direito a defender o coronel mais velho e veias saltadas pela fúria contra os adversários.

Em Santos (SP), cidade onde resido, voto e trabalho, a Câmara Municipal tem 17 vereadores. Pode chegar a 21, 23 ou 25 parlamentares, dependendo da batalha jurídica que se segue à aprovação da mudança em Brasília. De veteranos há pouco aposentados da vida pública aos pára-quedistas sem passado político, muitos são os que torcem para que a Câmara aumente o número de vagas no condôminio. Um resort com férias prolongadas.

É claro que a “festa da democracia” – outro jargão urubulino – não surpreende. Deveríamos saber que, neste endereço, privado e público se confundem. Quem ocupa cargos públicos se julga normalmente dono do patrimônio e o utiliza sem cerimônia. Demarca território, quase de forma canina.

A coisa pública se manifesta como tal somente em casos de comprometimento do patrimônio. Neste caso, o patrimônio é de todos. A criança se torna órfã sem que o pai sofra remorso por abandoná-la. Não há remorso em que realmente se sente no direito adquirido pelo voto. O poder não é representação coletiva. É causa individual.

Cada vez que olho para os parlamentares brasileiros, especialmente os repetidores do espírito cartorial e burocrático que marcou o início do processo colonial, lembro-me da Suécia. Lá, vereadores não são coronéis. Eleitores não são vistos como vacas dentro de um curral, que balançam – na visão deles – o título de eleitor em troca de dentaduras, sacos de feijão ou o emprego para o irmão sem futuro.



Vereador, na Suécia, é cargo não-remunerado. O sujeito comparece à casa legislativa uma vez por semana para os despachos e demais compromissos. Será que teríamos uma revoada de urubus em Brasília se os suplentes patriotas tivessem que trabalhar de graça? Pelo bafo da carniça, teríamos mais uma espécie na lista de animais em extinção.

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