A política como Fla-Flu



Matéria publicada no jornal Boqueirão (Santos/SP), edição n. 755, 12 a 18 de setembro de 2009, página 06.

Ricardo Kotscho, de 61 anos, é um nome que se confunde com a história da reportagem no Brasil, nos últimos 40 anos. Dono de um texto minucioso, mas sensível às histórias de pessoas comuns, ele é um dos repórteres mais admirados nas redações e em cursos de jornalismo. Mas faria corar muitos colegas adeptos da imparcialidade e da neutralidade na profissão. “Isso não existe.”

Para ele, declarar o próprio posicionamento não representa desequilíbrio ou jornalismo tendencioso. Kotscho defende que o repórter exponha suas crenças como atitude ética perante o público. A camisa do São Paulo que vestia durante esta entrevista, por exemplo, indica a coerência com as palavras. “Todo jornalista tem time de futebol.”

Kotscho foi secretário de Imprensa e de Comunicação do Governo Lula nos dois primeiros anos de mandato. Trabalhou em três campanhas presidenciais ao lado do atual presidente. Foi acusado de ser petista, mas também o chamaram de tucano quando entrevistou FHC anos depois de deixar o governo.

Com 45 anos de profissão, Kotscho é sempre repórter, inclusive quando está na condição de entrevistado. Gosta de enfatizar que “vive de fazer perguntas”. Com os tradicionais óculos pendurados no pescoço, ele devolve o pedido de entrevista com uma questão:

- Você é de televisão? Não? Então me acompanha porque preciso muito fumar lá fora.

A conversa ocorre na calçada, fora do Teatro Guarany, no centro de Santos. Kotscho quase acende um cigarro no outro, enquanto permanece encostado em um dos muros do teatro. Ele esteve na cidade para mediar um dos debates da Tarrafa Literária, o 1º Encontro Internacional de Escritores de Santos.



Ricardo Kotscho é um dos mais premiados jornalistas brasileiros. Venceu quatro vezes o Prêmio Esso, o mais importante do país, além do Herzog, Carlito Maia, Abramo e Troféu Especial de Imprensa da ONU. Trabalhou nos principais veículos de imprensa e escreveu 19 livros. Hoje, adapta-se à Internet, como repórter e blogueiro do portal IG (Balaio do Kotscho). Também dirige a revista Brasileiros, especializada em grandes reportagens.

Na entrevista abaixo, o repórter – como adora ser chamado - conversa sobre política, o governo Lula e as mudanças no jornalismo contemporâneo.

BOQUEIRÃO: Há um clima de polarização na imprensa brasileira. Você foi chamado de petista quando entrevistou FHC e de tucano quando entrevistou Lula. O jornalismo virou uma espécie de Flamengo e Fluminense?
KOTSCHO: O país virou um grande Fla-Flu. E o jornalismo está nesse rolo. Isso não é novo. Em 1982, na primeira eleição para governo do Estado depois da ditadura, entre Franco Montoro e Lula, trabalhei para a Folha de S.Paulo. Fui escalado para cobrir Franco Montoro (vencedor da eleição). E era pressionado pela assessoria do PT. Na época, o seu Frias (Otavio Frias de Oliveira – dono da Folha, falecido em 2007) determinou que, numa edição de domingo, todos os repórteres escrevessem em quem votariam e o porquê. Não existe jornalismo neutro. Eu sempre tive lado. A questão é o trabalho honesto do repórter.

BOQUEIRÃO: Você trabalhou para o Governo Lula. Mudou seu olhar sobre os jornalistas?
KOTSCHO: Eu via dificuldades no trabalho dos jornalistas. Muitos enfrentam dificuldades para fazer um trabalho honesto. Vários jornalistas me diziam que recebiam ordens de editores para descer a porrada no governo. Hoje, a maioria dos repórteres não tem liberdade.

BOQUEIRÃO: Depois que você saiu do governo, mudou seu olhar em relação ao presidente Lula? E as alianças políticas para garantir a tal “governabilidade”?
KOTSCHO: Acho que este governo tem resultados melhores do que o próprio Lula imaginava. A realidade mostra que é impossível governar sem alianças. Nem Jesus Cristo dá jeito nisso. Isso emperra o país. Uma vez, entrevistei o então presidente Fernando Henrique Cardoso e ele se queixou da base aliada. Perguntei porque não suspendia a aliança. Ele respondeu: - Você está maluco? Quer me derrubar!

BOQUEIRÃO: Você acredita na tese do lulismo e do petismo, como instituições políticas separadas?
KOTSCHO: O Lula sempre foi muito maior do que o PT. Acompanho este processo desde 1978, quando o Lula se tornou liderança sindical. No início, ele mesmo era contra, mas sempre teve uma relação difícil com o PT. Aliás, o partido não tem boa relação com o poder. Parece que nasceu para ser oposição. Quando trabalhei no governo, eu o acompanhei em 26 viagens ao exterior. Ele era maior do que o partido. Posso dizer isso porque sou amigo dele há 30 anos.



BOQUEIRÃO: E como o PT lida com isso?
KOTSCHO: Hoje, o PT lida bem. O partido tem características eleitorais. Virou um partido institucional-eleitoral. Hoje, brigar com o Lula é mau negócio. José Serra (governador de São Paulo) e Aécio Neves (governador de Minas Gerais) não falam mal do Lula. Quando ele decidiu que Dilma Roussef seria sua candidata, não consultou ninguém. Nem a mim! (Kotscho dá uma gargalhada entre baforadas de cigarro)

BOQUEIRÃO: Você retomou a atividade de repórter assim que deixou o governo. Hoje, dirige uma revista e virou blogueiro. Você está na profissão desde 1964. O que mudou na sua forma de trabalhar, com a Internet?
KOTSCHO: A maior diferença é o tempo. Na Internet, escrevo várias vezes por dia, todos os dias. Tenho pouco tempo para revisar o texto. Às vezes, sai truncado e com erros. Mas estou tranqüilo.

BOQUEIRÃO: De que maneira os negócios e o entretenimento interferem hoje no jornalismo? É possível confiar nos jornalistas?
KOSTCHO: A burocracia tomou conta de muitas redações. O negócio passou a ser mais importante. Às vezes, você não sabe onde começa a informação e onde terminam os negócios. As relações humanas são complicadas. O jornalismo esportivo, por exemplo, sempre padeceu disso. Hoje, apenas é mais escandaloso. Há também a promiscuidade entre jornalistas e políticos. Qual é a ética? Basta ser honesto com o leitor. Recentemente, fiz uma reportagem sobre produção de borracha no norte do país. A viagem foi paga pela Michelin (fabricante de pneus). No final do texto, estava impresso que viajei a convite da Michelin.

BOQUEIRÃO: O jornalista Clovis Rossi, da Folha de S.Paulo, disse há duas semanas, quando estreou uma coluna na Internet, que o trabalho do jornalista continua o mesmo: ver, ouvir, ler e contar. A Internet mudou essa premissa?
KOTSCHO:
É perfeito. Ele foi meu mestre. A grande reportagem também está na Internet. O problema é que o espírito da Internet não permite muito essa forma de escrever. Mas temos agora muitas revistas mensais de reportagens. Há jovens repórteres muito bons.

BOQUEIRÃO: Depois de 45 anos de profissão, o que ainda te motiva a fazer uma reportagem?
KOTSCHO: Uma boa história. Eu faço do mesmo jeito. Quando viajo para dar uma palestra, aproveito e faço uma reportagem no local ou escrevo para o blog. Vivo disso. Jornalismo é contar uma história. É uma história bem contada. Só há dois tipos de jornalismo: o bom ou o ruim.

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