A bicicletada




A Cadeia Velha, na sexta-feira, dia 31, carregará nas costas – involuntariamente – dois símbolos. O lugar, referência histórico-cultural, servirá de ponto de encontro para pessoas adeptas da cultura da bicicleta. A bicicletada, o nome do protesto, sai às 18 horas do Centro de Santos, bem na hora do rush. Você não percebeu que Santos agora cultiva congestionamento e períodos em que é melhor deixar o carro na garagem?

Os ciclistas pretendem expor, mensalmente, a insatisfação contra outra prisão, em formato de caixa de fósforo, sobre rodas e de aquisição voluntária e financiada. A cultura do carro, típica da classe média ávida por consumo, transformou o cenário da cidade. As avenidas ficaram curtas e estreitas; os trajetos, longos. Os semáforos multiplicam-se como repressão para quem desfila o 0 Km no asfalto. O comportamento agressivo de motoristas aflorou como sintoma de uma doença urbana. Muitos se transformam em um simples trajeto de 15 minutos.

Espremidos no conflito e na beira da calçada, os ciclistas, vistos como obstáculos para um trânsito apressado, por vezes sem necessidade de chegar a lugar algum. Para os otimistas, as ciclovias, mas ainda insuficientes para transformar as principais vias do município em artérias.

Ignorar a bagunça do trânsito representa engolir um rótulo que soa irritante: Santos como sinônimo de qualidade de vida. O título é entoado como um mantra, principalmente por políticos e bajuladores circenses, e serve para justificar ou encobrir uma série de defeitos de comportamentos individuais ou de políticas públicas.




Ouvimos como argumento o fato de que Santos é plana e isso facilitaria o trânsito de bicicletas e o hábito de andar a pé. Neste ponto, começam os paradoxos. Caminhar na orla da praia, por exemplo, não significa que resolvemos problemas cotidianos a pé. Neste ponto, parecemos com moradores do interior dos Estados Unidos: o supermercado fica a duas quadras, mas vamos de carro. Desfilamos nossos automóveis para aparentar um estilo de vida. Doente, aliás, mas sem perder a pose.

A cidade, plana e com a propaganda da qualidade de vida, passa por um problema insolúvel: carros se multiplicam como coelhos. Como escreveu no mês passado o jornalista Fernando de Maria, são oito automóveis licenciados por dia em Santos. É como se parte da garagem do meu prédio (ou do seu!) tivesse que ser renovada a cada 24 horas. Aliás, basta ver como as garagens estão infestadas de financiamentos em até 60 vezes. No cenário de aparências, vale dizer que é propriedade, como se o sujeito fosse sócio da financeira.

Torna-se evidente que o carro é parte da cultura ocidental do século XX. Soma-se o fato de ser um objeto de desejo da sociedade de consumo. Muitos desejam um carro e o enxergam como degrau na escalada social. Quem tem menos, vai de moto.

Bicicletas transitam em um patamar abaixo. Coisa de eco-chato, estudante duro, geração saúde, entre outros rótulos. O meio urbano as despreza. As políticas públicas são punitivas. Onde deixar as bicicletas? E o serviço de aluguel, comum em cidades européias geograficamente parecidas? As bicicletas são singelas demais para integrar os pacotes de obras faraônicas para o sistema viário. Custam pouco e mal alteram a paisagem. Qual peso tem perto de pontes sem projeto ou trens futuristas?

Na verdade, o ciclista é um motoboy sem motor. Visto como um estorvo, deve ser isolado ou xingado pelos donos da rua, sentados em bancos confortáveis e impondo-se pelo tamanho. Na bicicletada, espera-se adesão suficiente para que os ciclistas ocupem o espaço que lhes é devido. Ou melhor, que mereceria ser dividido em prol de uma consciência coletiva.

Comentários

Wilson Roberto disse…
Santos virou "mini-sp", caótico e com o transporte público de péssima qualidade. Para piorar não tem planejamento nenhum, faltam placas, sinalizações e a desorganização dos semáfaros é de dar inveja ao uzubesquistão (ou qualquer outro país que mal tem asfalto).

O que salva um pouco as bicicletas são as ciclovias que ainda temos, e em São Paulo? Cidade que tem como prioridade os carros, e agora para enterrar de vez uma das últimas esperanças, "acabaram" com os fretados.

Santos precisa urgentemente de uma lei para conter o caos das suas ruas estreitas e poucas avenidas, um rodízio como existe na "cidade dos carros", uma vez que não vivemos como os Jetsons.
cristiane disse…
Nossa... Que texto crítico...
Gostei muito. Até porque, adoro andar de bicicleta.
Voltando pro texto. É uma crítica que leva em conta um ponto que nem sempre está em evidência.
Por outro lado, vejo um certo movimento de bicicleta como algo da moda. Não sei se pelas construções de ciclovias, ou pelo apelo ecológico da ação.
Mas... o que é certo é certo. Pra muitos a bicicleta é sim um transporte, principalmente para ir ao trabalho. Basta atravessar a balsa pra ver. Ou estar na divisa Santos- São Vicente no horário de rush.
Em Santos vejo que falta um pĺanejamento melhor das ciclovias. Deixando de lado os "caminhos de passeio", para transformar as ciclovias da cidade no que você chama de artérias.
O assunto tem que deixar de ser uma "coisa bonitinha" pra ser mostrada no DO, para virar uma política pública verdadeira.
Adorei você ter voltado a escrever.
Não seria ótimo que o prefeito e os vereadores se deslocassem de ônibus para o Centro? Temos aí os seletivos, com ar condicionado para os engravatados. Além do exemplo, estariam em contato direto com a população. Democracia.
Alessandro,

É um caso típico do Brasil. Os políticos jamais utilizam os serviços que gerenciam, diferente de alguns países como a Suécia. Um sinal da falta de compromisso com a coisa pública! Eles poderiam matricular seus filhos e netos em escolas públicas ou andar de bicicleta nas ciclovias ou utilizar postos de saúde. Grande abraço!