O trem para Juquiá

O sobrado do canal 3 é o maior símbolo da família. Ali, aconteceram reuniões, festas, brigas e acordos de paz que formaram quatro gerações. Embora foco de relacionamentos, a casa quase centenária abrigou poucos para uma noite de sono. Isso deveria ser motivo de orgulho para aquele moleque de 13 anos, em plena década de 80. Mas será que um adolescente se importaria com isso? Com a cabeça povoada de dúvidas e de frágeis certezas, provavelmente não pensaria no assunto ou o consideraria irrelevante.

Passar a noite no andar de cima do sobrado não tirou o sono dele. Não havia expectativa alguma por causa daquela experiência noturna. A ansiedade dizia respeito ao que aconteceria na manhã seguinte. Na verdade, logo ao amanhecer. O medo de perder um compromisso que exigia pontualidade britânica.

O que o manteve acordado quase a noite toda era a viagem. Viajar de trem de Santos a Juquiá naquela manhã de sábado. O trem sairia às 7 horas, sem atrasos. Acordaria antes das seis, o que teria provocado a insônia. Mentira! Era a ansiedade de seguir por um caminho novo, desconhecido em absoluto, e por um transporte também inédito para ele.

O passageiro de primeira viagem seria acompanhado pelo primo Orlando Carlos, na época com cerca de 25 anos. A idéia era passar o final de semana no Vale do Ribeira, o que incluía a pousada na casa de parentes.

A estação de trem fascinava. Pessoas correndo, olhos no relógio, malas pesadas com o barulho de arrastadas, a cabine do bilheteiro retirada de um filme sobre o interior de um país qualquer. Depois, embarcar em dos vagões de passageiros. Os bancos pareciam réplicas daqueles que se vêem em lanchonetes norte-americanas do período rockabille. Mas o tempo colocava os assentos nos devidos lugares. Assim como os ingressos faziam com os passageiros.

O desgaste dos bancos cinzentos não trazia glamour ao passeio. Furos eram comuns em um tecido azulado (ou de tom cinza) desgastado, mas não significavam sintoma de desconforto. Irrelevante! O trajeto marcava pelas estações e pelos tipos humanos que transitavam pelos vagões. A lista incluía, claro, os funcionários uniformizados, de humores variados.

A estação do Samaritá, em São Vicente, lembrava uma cidade à parte. Dezenas de pessoas na plataforma, destinos múltiplos, sacolas de compras, rostos cansados de uma semana em que viajar de trem tornara-se uma obrigação a mais, capaz de exterminar a vontade de ver o que corre ao lado de fora.

Após duas horas, Itanhaém! Cidade que o moleque de 13 anos freqüentava duas, três vezes por mês. Mas que provocada novas impressões a partir dos trilhos do trem, que apontavam para outras perspectivas além da faixa de areia.

A partir daí, composições mais vazias e cenários de Mata Atlântica até o Vale do Ribeira. O primo mais velho – hoje não se tem certeza – apontava para as curiosidades do trajeto, fosse espaço urbano, fosse mata fechada. De alguma forma, mantinha-se distraído nas três horas distantes.

Ao meio-dia, quando encostou em Juquiá, o trem poderia ter moído seus passageiros de cansaço. Mas, nesta idade, o que seria uma viagem de cinco horas, naquelas circunstâncias. Tanto que ele não se lembra como voltou. Provavelmente de ônibus. Nunca se importou em perguntar para seu colega de viagem, pois crê no valor da travessia, e não em como se chega ao destino.

Hoje, com mais de 30 anos, o “garoto” observa a Estação da Cidadania, espremida por um hipermercado, perto do cruzamento das avenidas Francisco Glicério e Ana Costa, em Santos. A nostalgia ressuscita sentimentos ambíguos. A estação aguça o prazer de uma viagem idealizada pela memória e recriada pelo presente com elementos talvez distantes do real.

Por outro lado, também cutuca a melancolia de quem não poderá repeti-la, nem com as maravilhas da modernidade, lindas nos projetos e sempre prometidas pelo engravatados do poder. Viajar de trem, na memória do século passado!

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