O casarão teatral

Matéria publicada no jornal Boqueirão (Santos/SP), edição nº 714, de 22 a 28 de novembro de 2008, página 7. Obs.: os dois textos abaixo complementam esta reportagem.



“Vende-se casa com tudo, seus móveis, seus moradores, seus sentimentos.” Os dizeres da placa, entre duas portas de ferro de uma tradicional camisaria, soam como um delírio do proprietário do imóvel. A placa foi pendurada na única entrada de um casarão centenário, no número 99 da rua General Câmara, no Centro de Santos, acima da loja de camisas.

Ali, uma escadaria de 30 degraus íngremes, com corrimões tortos de madeira, leva o espectador aos 10 cômodos da residência (com ares de cortiço), onde acontece a peça “Nossa Vida como Ela É”, encenada pelo grupo Taetro de Teatro. Mas a encenação começa na rua, onde a proprietária do casarão, interpretada pela diretora Maria Tornatore, explica ao público – visto como comprador em potencial do imóvel - a dinâmica do espetáculo. São 30 pessoas em fila indiana na escuridão do centro em um sábado à noite, com chuva. O limite é de 40 pessoas por sessão.

A auxiliar de logística Val Matias de Sousa, de 31 anos, está entre as primeiras da fila. Ela, que veio ao local por achá-lo diferente, demonstra dúvida depois das explicações. “Como vou assistir à peça?”

Ao lado dela, a promotora de vendas Daniele Tavares Roener, de 27 anos, que acompanharia o espetáculo pela décima vez. “No começo, achava desorganizado. Depois, ficou dinâmico. Hoje, evito a cena do banheiro. É pesada e me causa mal-estar porque passei por uma experiência parecida.”

Sentir-se perdido ou chocado com algumas das cenas é normal dentro do casarão. São 50 atores, que se dividem em 40 cenas, quatro por cômodo. No total, 52 histórias, todas elaboradas pelo elenco. “Os casos e informações são factuais, vivências dos atores ou de parentes e amigos deles”, explica Tornatore.

O espetáculo é baseado no universo do dramaturgo Nelson Rodrigues. A proposta é lidar com o cotidiano do ser humano por meio de seus desejos, angústias, hipocrisias e contradições. Neste sentido, as cenas dependem dos espaços da casa, que se transforma em personagem. “As cenas se adaptam à cenografia do cômodo”, afirma a diretora.

As decisões e a organização do espaço são coletivas. Quarenta minutos antes do espetáculo, elenco e diretora definem a distribuição dos personagens pelos espaços do casarão. O imóvel foi cedido por Márcia Marques, amiga da diretora. Os atores pagaram a iluminação. Os móveis, de décadas diferentes, foram comprados de segunda mão, o que torna o ambiente envelhecido, pesado para os temas encenados.




O público não consegue assistir a todas as histórias. Em quase duas horas de peça, o espectador visita somente três cômodos. A peça é dividida em três partes. Em cada cômodo, acontecem quatro cenas que compõem uma etapa da apresentação. Depois de meia hora, a dona da casa toca uma sineta, o público troca de ambiente e as cenas são reapresentadas. Neste momento, atores e espectadores se misturam entre corredores e o hall principal.

Frango com quiabo - Em “Nossa Vida como Ela É”, o público interage com o elenco. Na cozinha, por exemplo, uma senhora, enquanto fala do caso amoroso que tem com o próprio filho, pede ajuda para escolher feijão e distribui balinhas mineiras. A tia dela, na cena seguinte, oferece frango com quiabo, verdura que servirá de metáfora para a seqüência em que um caipira vira amante da cunhada.

O ator Germano Dorna, com 44 anos de teatro, participa de quatro cenas. Ele interpreta, por exemplo, um morador alcoolizado que recebe uma notícia de suicídio e um personagem que reencontra o antigo amor 20 anos depois. È a primeira vez que Germano trabalha com o grupo e se surpreendeu em muitos aspectos. “A liberdade de criação é importante para muitos atores que tem a primeira experiência com teatro. Além disso, você tem que dizer toda uma vida em quatro minutos e meio de cena.”

A dinâmica da peça foi o que atraiu o ator. “Para o público, colocamos um verniz para não traumatizá-lo. Mas é uma muvuca”, explica Dorna, entre risos, antes da última passagem de texto.

Motel - A peça, que faturou cinco prêmios no Festival Santista de Teatro Amador (ver matéria abaixo), mistura dramaturgia e música. O ator Zellus Machado, como um trovador, participa de várias cenas acompanhado de um violão. As letras correspondem às ações do elenco. Como no banheiro, em que duas jovens mantém secretamente um relacionamento amoroso ao som de uma letra que enaltece a sedução feminina.

O espetáculo possui apenas um patrocinador, um motel, que auxiliou no material de divulgação. Nada mais sugestivo? “Eles se interessaram, mas se não houvesse patrocínio a peça sairia do mesmo jeito”, afirmou Maria Tornatore.

Após duas horas, a dona da casa agradece a visita dos supostos compradores do imóvel. No hall de entrada, elenco e público conversam como uma extensão da dramaturgia.

Entre agradecimentos e palavras calorosas, a auxiliar de logística Val Matias de Sousa prometeu voltar, assim como muitos dos espectadores. Ainda faltam sete cômodos para serem visitados e o testemunho de algumas dezenas de histórias incomuns da normalidade cotidiana.

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“Nossa Vida como Ela É” – sábados e domingos, às 20h30, até 7 de dezembro.
Rua General Câmara, 99 – Centro – Santos. Ingressos: R$ 20. Informações pelo telefone: 3028-6680Locais de venda: Loja Hapanui (Av. Pinheiro Machado, 845), em Santos, e na rua João Ramalho, 636 – São Vicente.

Comentários

Anônimo disse…
Deve ter sido legal fazer esta matéria. Ficou muito bacana. Mais um caso de descaso e falta de incentivo ao teatro.
Rafael, muito obrigado pelo comentário!!! Não só foi interessante fazer a matéria como voltei ao casarão mais duas vezes para ver as cenas de todos os cômodos. Pena que a temporada acabou!!! Foi um sucesso de público. Talvez o espetáculo seja retomado em 2009. Grande abraço!!!