"Uma cidade sem conflitos"



Versão na íntegra de entrevista publicada no jornal Boqueirão, n.709, 18 a 24 de outubro de 2008, pág. 3.



A historiadora Vera Lúcia Nagib Bittencourt é uma torcedora fanática do debate político, seja em sala de aula ou em conversas informais. Ela reafirma – e não é necessário provocá-la - que uma cidade se faz pelo choque de idéias, de interesses.

Observadora perspicaz do processo eleitoral, Vera lamenta que Santos tenha feito a opção inversa. Para ela, os santistas colocaram a inevitável discussão de propostas e programas para debaixo do tapete. O reflexo seria a preferência por um político com características de gestor para conduzir o município. O discurso envelhecido da oposição também teria contribuído, de acordo com a historiadora, para a falsa calmaria na campanha eleitoral.

Vera é doutora em História Política pela Universidade de São Paulo (USP), onde participa de um grupo de pesquisa sobre a Formação do Estado e da Nação. Atua também como pesquisadora do Museu do Ipiranga, na capital paulista. Além disso, é professora da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), onde ministrou aulas de História Contemporânea e de História das Idéias Políticas e Econômicas. Atualmente, trabalha com formandos em História nos Trabalhos de Conclusão de Curso.

Na entrevista a seguir, a professora analisa o cenário político, principalmente em Santos, após a eleição, e as perspectivas para os próximos quatro anos.

Boqueirão: Qual a sua avaliação inicial do processo eleitoral, principalmente entre os prefeitos que ganharam autorização para governar por outros quatro anos?
Vera Lúcia Nagib Bittencourt: Fico pensando qual é o perfil destes candidatos que se reelegeram. A ênfase é em cima do gestor. Parece, para mim, a anti-política. É a idéia da tecnocracia. Há 15 anos, a tecnocracia provocava brotoeja. Mudou-se o nome para gestão e a coisa ficou palatável. A idéia não é mais conflito, dissenso, e sim eficiência, limpeza, suavidade. A política se esvazia no seu sentido.

Boqueirão: O prefeito João Paulo Tavares Papa se encaixa no papel de gestor?
Vera Bittencourt: Eu acho que sim. E ele investe nisso. Esse gestor tem que ser eficiente. O Lula dá esse exemplo, na segunda fase da política dele. O eleitor é bombardeado por essa idéia da gestão. Isso está dentro da escola, por exemplo. O discurso, em diferentes segmentos institucionais de políticas públicas, é de gestão. O que seria uma gestão eficiente? É aquela que não provoca atritos, sem ideologia. Isso significa provocar menos conflitos. De alguma forma, especialmente nas cidades médias e grandes, a competição está acirrada na vida privada das pessoas. Se algo aparece como um óleo nos trilhos, as pessoas vão buscar uma espécie de aconchego. O gestor é alguém que tem realizações e é capaz de fazer alianças. O que levou o Papa adiante foi esse arco de alianças partidárias em termos de tempo de televisão. A questão não é apenas dominar a televisão. É não permitir que outras propostas possam ser colocadas.

Boqueirão: Como fica então governar com 17 partidos, todos querendo um pedaço do bolo?
Vera Bittencourt: A questão não é o partido. É o gestor. Os partidos estão tão fragilizados que se ancoraram em uma pessoa, em um certo populismo. Trata-se de resolver problemas.

Boqueirão: E os partidos pequenos? Eles não podem exigir cargos, por exemplo?
Vera Bittencourt: Apenas se o prefeito deixar. A habilidade do Papa se revela não apenas na gestão, mas em trabalhar com o arco do desejo. Deixar sempre tenso o arco da promessa. Ele não bate a porta para ninguém, tudo parece possível. O segundo mandato era um atrativo. Os partidos pequenos não têm força. O que parece precipitado, ainda mais em política, é pensar na sucessão dele agora.

Boqueirão: O PT teve, na totalidade, cerca de 65 mil votos. Por quê?
Vera Bittencourt: Só 65 mil votos. A velha cidade polarizada é apenas uma coisa de momento, um embalo. A primeira eleição da Telma de Souza, em 1989, foi um momento único. Depois disso, nunca mais. Teve apenas o David Capistrano, com uma visão interessante de políticas públicas, mas polêmico, amado e odiado ao mesmo tempo, às vezes pela mesma pessoa.

Boqueirão: Por que o PT e o PSDB, dois grandes partidos nacionais, não têm bom desempenho na região? Por que os dois partidos são exceção à regra?
Vera Bittencourt: Os demais partidos, em cenário nacional, fazem alianças. A política em Santos é marcada pela tradição. Quando surge uma liderança, ela permanece até virar bagaço de laranja. Aqui, curiosamente, o PMDB elege Antonieta de Brito, em Guarujá, uma dissidente do PT, e o Papa, em Santos, além do Tércio Garcia, que tem um jeito de PMDB, mas está em outro partido. Outro ponto é que a liderança tenta gerar continuidade. Desta velha cepa e que continua dominando a brincadeira, é o ex-deputado Oswaldo Justo, mesmo morto. As idéias dele têm influência. Ele foi um político articulador, preparador de longo prazo. A eleição do Papa é um projeto do Justo. Olhe para trás, é aquele partido de Centrão, uma característica da cidade que parece extremamente confortável para o eleitor.



Boqueirão: Santos é uma cidade conservadora?
Vera Bittencourt: Esta história de passado envolve a cidade. A competição entre cidades, uma característica pós-moderna, faz com que elas busquem uma forma de distinção para atrair investimentos. Há algum tempo, Santos fez a opção pelo turismo. Até aparecer a história de Petrobrás e pré-sal, não se falava em outra coisa. Há três anos, as lideranças, inclusive universitárias, discutiam a indústria do turismo e seu desenvolvimento. Na distinção, o turismo com o Centro Histórico. Isso me parece uma grande criação na memória e no imaginário. São valores positivos no passado histórico. A cidade foi grande na época do café e isso a diferencia e nos torna aristocratas. Sem nenhum fundamento. Assim, a história da esquerda proletária vai se apagando. A grande habilidade do Papa é transformar todos em cidadãos, mas não a plebe. É a inclusão pelo consumo, e não pela política. Nossa inclusão seria pela história, pelo passado. Só teríamos cidadãos. A plebe é jogada fora, não existe, não aparece e não tem voz. O PT não conseguiu encontrar um tema para contestar essa visão. É tudo bonito, cenográfico. O símbolo da cidade é o bonde. Interessante e emblemático.

Boqueirão: A Câmara Municipal mudou oito das 17 cadeiras, mas continuam apenas três vereadores na oposição, mesmo cenário da primeira gestão do Papa. Qual é a sua avaliação?
Vera Bittencourt: De certa forma, as principais raposas ficaram. Mantovani Calejon, que não se elegeu, teve um problema partidário. Ele é personalista. Acho que tem razão quando fala da questão da saúde e do boato da morte. Esta imagem pegou nele.

Boqueirão: E o papel da ex-prefeita Telma de Souza?
Vera Bittencourt: A Telma foi a grande liderança de esquerda, a maior estrela. Ela gerou figuras políticas, mas que viveram um embate muito violento entre si.

Boqueirão: Isso explica o fato de Maria Lúcia Prandi e Mariângela Duarte terem morrido abraçadas na eleição?
Vera Bittencourt: As três.

Boqueirão: Você disse que Telma foi uma liderança de esquerda. E os 20 mil votos dela para vereadora? O que significam?
Vera Bittencourt: Significam um desgaste. Eu esperava mais.

Boqueirão: O que se comenta no meio político é que ela fará uma oposição ferrenha ao prefeito, pensando na sucessão em 2012. A senhora concorda?
Vera Bittencourt: Não concordo. Fico pensando, seriamente, se a Câmara vai dar a presidência para ela. Será um jogo pesado. Teoricamente, como a mais votada, ela teria direito à presidência. Não sabemos! A possibilidade maior é a continuidade do Marcus de Rosis por causa dos três vereadores do PMDB e dos três do PSDB. Telma está desgastada, esvaziada dentro do próprio partido. O PT parece muito envelhecido. Qual é o papel do Daniel Vasquez (professor universitário de 29 anos, candidato a vice na chapa de Maria Lúcia Prandi)? Quando terminar o mandato do Papa, as forças de situação terão Paulo Alexandre e Bruno Covas (deputados estaduais pelo PSDB). Todos vão precisar do prefeito. E a oposição?

Boqueirão: O deputado federal Beto Mansur (PP) é um possível sucessor?
Vera Bittencourt: Só se for por vaidade. O Beto é muito matreiro para entrar de cara na corrida. Ele vai pagar para ver até o final. Paulo Alexandre deve fazer o papel de coelho nesta corrida. Vamos ver se ele terá fôlego até 2012. Do outro lado, o velho confronto: Prandi, Telma e Fausto. Esta eleição foi brincadeirinha para o PT. O que a Mariângela Duarte (PSB) vai fazer? Em termos de propostas, ela foi quem mais investiu na renovação.

Boqueirão: Então por que Mariângela teve apenas 19 mil votos, menos do que Telma de Souza para vereadora? Houve voto útil para a Maria Lúcia Prandi, por causa das pesquisas eleitorais?
Vera Bittencourt: O eleitor que acredita na política busca certa coerência. A estratégia dela, ao buscar mais tempo na televisão, de se associar ao Democratas fez com que as pessoas que votariam por ideologia se desencantassem. Isso contribuiu de forma negativa. Os radicais não quiseram ouvi-la. E ninguém discute que ela não seja combativa e honesta. Cerca de 77% dos eleitores votaram no prefeito. Sem votos brancos e nulos, sobram 20% do eleitorado, que se pulverizou, se desencantou. A impressão, inclusive, é que essa parcela saiu da brincadeira. Isso não significa que os anseios, os sonhos, as possibilidades, as visões de mundo deixaram de existir. O que me incomoda é a idéia de que não haverá mais espaço para política. Não é assim! É deste momento em que tudo parece tão calmo, tão resolvido, que surgirão novos questionamentos.

Boqueirão: Das nove cidades da região, três serão governadas por prefeitas, embora Peruíbe seja um caso à parte, pois Milena Bargieri substituiu o pai, Gilson Bargieri, a três dias da eleição. Na história, apenas quatro prefeitas administraram cidades na Baixada. Por que mulheres foram eleitas em Guarujá e Cubatão? É uma questão de gênero ou de renovação?
Vera Bittencourt: É uma questão de acreditar que as mulheres possam ser mais íntegras do que os homens. Neste momento, a mulher se tornou mais competitiva na sociedade, mais dedicada, mais presa a valores. Cubatão e Guarujá viveram administrações conturbadas e problemáticas. São cidades-dormitórios, onde paira a coisa da corrupção. São duas mulheres com trajetória política. Nenhuma chegou de pára-quedas. Fizeram concessões e souberam negociar. Antonieta saiu do PT e foi para o PMDB, associando-se com a turma do falecido Maurici Mariano, o que garantiu respaldo com o centro em Guarujá. O filho dele está na Câmara. As duas passam a imagem de mulheres aguerridas, combativas e que seriam mais capazes do que os homens de fazer menos concessões. São pessoas tipicamente formadas pelo PT, pela militância. Conseguiram carimbar em si a integridade.

Boqueirão: Por que, no Legislativo, o predomínio masculino é quase absoluto, salvo exceções?
Vera Bittencourt: Não sei. Será que as mulheres acham que o Legislativo não resolve nada? O que cola é uma ação? Parei para pensar no que as mulheres disseram na campanha. Em Santos, muitas professoras. O sujeito acha que a vida pública o classifica para disputar um mandato. Muito discurso do tipo: vou cuidar da Câmara como cuido de minha casa. Faltou a voz dos aposentados. Essa população ainda não encontrou alguém que efetivamente os entusiasme. Na hora que conquistá-los, o quadro ficará mais conservador. Os políticos falam do aposentado como objeto, e não como protagonista social.

Boqueirão: Os candidatos que conseguiram trabalhar em nichos, em grupos sociais, como colônias de imigrantes ou entidades religiosas, não tiveram melhor desempenho na eleição para vereador? O vereador é um representante de nichos?
Vera Bittencourt: Se isso fosse verdade, seria lindo! O que seria uma Câmara? Um espaço de debate desses grupos! Penso que não emergiram lideranças de segmentos, como portuários e petroleiros. É retórica. O vereador Sadao Nakai (PSDB), por exemplo, é alguém para ser observado com respeito.

Boqueirão: Metade do eleitorado estava indeciso para vereador a 72 horas da votação. É apatia? O voto é decidido no micro-cosmos do eleitor?
Vera Bittencourt: As pessoas não se sentiram apáticas. Elas não querem o conflito. Os eleitores agiram para evitar o conflito, como se fosse possível. É retórica. Os conflitos estão aí. Não se conseguiu mostrar o conflito de forma positiva. As candidaturas de esquerda, neste sentido, fracassaram. Não existe vida política na cidade. Como vai aparecer alguém capaz de levar o eleitor à urna? Existe o sujeito localizado, na Assembléia de Deus, no clube Estrela de Ouro. A grande maioria não tinha quem eleger. Não tem política! Quanto mais pulverizado em número de partidos, é melhor para a ausência de debate e para quem está no poder. Desde que ele seja capaz de colar em si a imagem de gestor. O que é uma certa inocência! Grandes temas estão viciados. Educação, habitação, saúde, meio ambiente. Você trabalha só com o substantivo e ninguém fala nada. Talvez por isso o eleitor se volte para o universo pequenininho.

Boqueirão: Qual será o impacto desta eleição em 2010 e em 2012?
Vera Bittencourt: É uma chance para quem perdeu. Em 2010, será uma eleição plural, mas as pessoas estão cansadas disso. Os próximos dois anos serão densos em termos políticos. A política é móvel, volátil. Nada está calmo. Os acontecimentos significam novas estratégias, alertas e possibilidades. Não acredito que Mariângela Duarte, Maria Lúcia Prandi e Telma de Souza enfiem a viola no saco. O papel delas deverá ser de articuladoras, e não de cabeças de chapa. Espero que elas tenham a fineza de perceber isso. Há também novas lideranças chegando, como Paulo Alexandre Barbosa e Bruno Covas. De certa forma, Márcia Rosa e Antonieta de Brito são uma renovação, mais novas, menos marcadas por disputas internas dos próprios partidos.
Com colaboração de Luiz Nascimento.

Comentários