O jogo dos generosos

A terça-feira representava o primeiro dia de trabalho na semana para um grupo de profissionais. Cerca de 420 pessoas se preparavam para uma atividade importante, porém pouco observada por olhares externos. Tratava-se de um jogo sem os holofotes da mídia, praticamente sem público, em ritmo tranqüilo e com o resultado conhecido de véspera. Nesta partida, não havia empate, tampouco adversários de peso. Descompromissados com suas funções sociais, os jogadores se movimentavam em campo com o mesmo objetivo: beneficiar seus próprios colegas.

Nas sombras desta rotina obscura, os deputados federais aprovaram a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 333, que permite aumentar o número de vereadores nas Câmaras Municipais de todo o país. São 7554 novas vagas. Na Baixada Santista, estima-se que o número de parlamentares saltará de 108 para cerca de 170.

A pergunta que nasce é óbvia: por que as cidades precisariam de mais vereadores? Se fizermos uma pesquisa nas ruas, saberemos a resposta de antemão: é absolutamente desnecessário – escrevendo de forma educada – colocar mais políticos no Poder Legislativo.

Via de regra, os vereadores atuais na Baixada Santista operam de forma independente e distante da sociedade. Salvo categorias específicas, que muitas vezes ocupam as galerias em busca da manutenção de benefícios (ou privilégios, depende do caso), a população também facilita o trabalho dos parlamentares, ao virar as costas – desiludida, mas também omissa – para um processo de fiscalização.

Os vereadores geralmente se omitem da responsabilidade de fiscalizar o Poder Executivo. Em São Vicente, por exemplo, a oposição inexiste. Trata-se de um Frankstein partidário gravitando em torno do prefeito Tércio Garcia. Aliás, ele pode ser abandonado a qualquer momento se o grupo se interessar por alguém mais “rentável”. Em outros municípios, a oposição se encontra fragilizada em dois ou três parlamentares, que assistem a seus colegas aprovarem projetos do Executivo a toque de caixa.

A olhar pelas atitudes diante da PEC, os vereadores – como os políticos em geral – ignoram a descrença generalizada dos eleitores, que os associam aos conchavos e corporativismo, quando não à corrupção ou aos projetos de lei risíveis, como aquele que obriga os parlamentares a se tratarem por Excelência na Câmara de Santos. Qualquer pesquisa de opinião coloca a classe política no final da lista de credibilidade.

Santos, por uma conta inicial, poderia passar de 17 para 23 vereadores. Os parlamentares partiram para o argumento óbvio: aumento de representatividade. A análise é discutível. O grau de resposta à população não se mede pelo número de cadeiras ocupadas. Elevar o número de partidos no Legislativo é outro item do debate que não pára em pé. O que vemos hoje são coligações enormes (em Santos, 17 partidos flutuam em torno do prefeito João Paulo Tavares Papa), formadas em boa parte por legendas de aluguel, por vezes com meras dezenas de filiados. Representatividade para quem? Só se for para castas específicas!

A PEC, embora inche o número de cadeiras, modifica o mecanismo de repasse de recursos financeiros para as Câmaras. Atualmente, o dinheiro varia conforme o número de habitantes. Santos se enquadra na faixa populacional de 300 mil a 500 mil pessoas. Ou seja: a Câmara recebe, por ano, 6% da receita municipal, ou R$ 48 milhões.

Pelo novo critério, o Legislativo teria o repasse definido a partir da receita municipal. Neste caso, Santos ficaria no patamar das cidades com valores acima de R$ 200 milhões por ano. Assim, a Câmara ficaria com 2% da receita, um terço dos recursos atuais. É possível imaginar seis novos vereadores, com dois terços a menos do dinheiro para administrar?

Engana-se quem pensa que os generosos deputados federais cometeriam erro tão primário! A PEC retira o limite de 70% do orçamento para gastos com folha de pessoal. Isso significa que as Câmaras podem comprometer até 100% dos recursos com salários. As demais despesas entrariam na conta das Prefeituras, ou melhor, sairiam dos bolsos dos contribuintes.

Sentar em uma das supostas 23 cadeiras disponíveis em Santos é o sonho de consumo de muitos pré-candidatos. São mais de 300 pessoas, muitas delas sem a menor experiência em administração ou com conhecimentos básicos sobre a cidade. O que interessa são benesses do poder, as mordomias do sistema cartorial e burocrático que podem alterar a vida do sujeito e de seus parentes. É ganhar na loteria, somada ao poder de influência.

Sutilmente, a quatro meses da eleição, os deputados federais mais uma vez indicam como a classe política enxerga sua relação com os cidadãos. Este grupo os visualiza como público-alvo, que merece discursos de ocasião, sem receber indicações de resposta. E lembre-se, eleitor: Márcio França se absteve, e Beto Mansur votou favoravelmente à proposta.

Na partida de terça-feira à noite, disputada nos corredores do poder, os vencedores saíram sorrindo e discursando, enquanto os eleitores-perdedores sequer souberam que entraram em campo. A Proposta de Emenda Constitucional agora entra na pauta do Senado. Pelo histórico, novo exemplo de espírito de corpo. Em quatro meses, os eleitores estarão dispostos a engolir os adversários-eleitos beijarem as próprias camisas, de cores individualizadas e símbolo corporativista?

Comentários

Analisando as mais diversas cidades, geralmente encontra-mos pontos muito similares, como a politica interna que comanda seus representantes, assim como numa orquestra, temos um "maestro" que rege os demais.
Direcionando de forma "sutil", o que lhe convêm.
Só que quando chega nos 45 do segundo tempo, de um jogo sem prorogação, alguns jogadores arrumam um jeito de sair com "classe", antes do final da partida.
Afinal, quem fica e enfrenta a torcida é quem não tem escapatória.
Assim é na minha cidade e concerteza em tantas outras como as já citadas.

Abraço !
Heidy, obrigado pelo comentário. O coronelismo se mantém vivo nas cidades brasileiras. Alteram-se os nomes e as modalidades, mas a prática permanece.
Murilo Netto disse…
É triste termos que debater questões éticas na política. Seria mais produtivo se o Congresso e as Câmaras se preocupassem em planejar a consolidação de políticas públicas para a juventude.

Um detalhe não abordado no texto, que vem apavorando alguns parlamentares santistas, é que, com a nova lei, a previsão da receita da Câmara ficaria em torno de 20 milhões. Detalhe: só a folha dos inativos beira os 18 milhões. Ou seja, ninguém se preocupa com o aumento dos vereadores, que teoricamente causaria um inchaço nos gastos. O problema é a diminuição dos recursos recebidos... A mudança na cláusula que garante a utilização de 100% do recurso para custeio de cargos e salários, para eles, é "um detalhe que não ajuda em nada".

Forte abraço!
Murilo, obrigado pelas considerações. O texto aborda a redução de receitas, fato que realmente preocupa os vereadores. No entanto, o aumento no número de vagas nas Câmaras os alegra. Muitos correm risco de não se reeleger em outubro. Felizmente, o Senado não deverá aprovar a PEC para a próxima gestão. A votação tem que ocorrer até o final do mês. Grande abraço.
Eduardo Henrique disse…
Ainda não podemos esquecer que a votação do segundo turno para a aprovação da PEC ocorreu um dia após ao pleito da primeira rodada de votos. Lembrando também, que o “segundo turno”, de acordo com o regimento interno, deve ocorrer cinco dias depois de aprovada em primeira instancia.
Lembrando que no segundo embate, Márcio França novamente se absteve; Beto Mansur manteve seu voto favorável.
O aumento de cadeiras no Legislativo nas nove cidades da Região será de até 56%, contra os aproximados 15% no país.
Em Praia Grande, existe uma lei que limita o número de vereadores a treze. Já está em estudo derrubar este regimento interno.


Neste jogo, entramos em campo com 10 jogadores a menos e o placar aponta uma "lavagem" histórica.