O endereço errado

Depois de alguns anos de afastamento, provocado pelos compromissos da vida, a amizade entre nós foi retomada. Para cumprir uma promessa, fui conhecer o ambiente de trabalho dela, recém-conquistado por esta profissional plenamente dedicada a alterar o entorno de seu universo.
Ao chegar no local combinado, o primeiro estranhamento de minha parte. Os muros eram altos, com três metros de altura, pintados de cinza, sem vida. Talvez fosse uma nova corrente artística! A pintura era uniforme, sem identificações do lugar, sem quaisquer particularidades que dessem pistas do anônimo autor das pinceladas.
O recepcionista do portão de entrada estava armado de cassetete e vestia um típico uniforme de guarda. O próprio portão assustava pela imponência e por estar trancado àquela hora do dia com vários cadeados, dos mais variados formatos. A justificativa do guarda para tanta preocupação eram as constantes fugas. Muitos dos internos escapavam com a luz do sol. Houve um que até sorriu para os guardas enquanto pulava o muro. Simplesmente desapareciam, às vezes com a ajuda de familiares e amigos.
Após a devida identificação, fui encaminhado para a recepção da unidade. Outro portão, este menor e com apenas uma tranca. Um funcionário me atendeu mecanicamente. Não foi necessária revista, pois minha amiga avisara a respeito do visitante. Mesmo assim, tive que informar o que carregava na bolsa. A explicação do funcionário foi imediata: como o lugar enfrenta diversos casos de violência, tornou-se necessário se precaver. E desconfiar de todos. Muitos dos internos têm históricos de agressão. Até armas de fogo passaram pelos mecanismos de segurança, embora os conflitos mais freqüentes envolvam socos e pontapés. Se é que isso refresca o clima.
Nos corredores, vários funcionários, muitos deles uniformizados. A roupa padronizada indicava um grau mais baixo na hierarquia funcional, porém não reduzia a importância deles no contexto. O trabalho consistia numa simples tarefa: monitorar o tempo todo os garotos, independente do que fizessem de forma oficial (limpeza, cozinha etc.). Afinal, o objetivo dos homens engaiolados é sempre escapar. Qualquer aproximação, qualquer relacionamento gera desconfiança de ambas as partes. Posicionam-se como adversários no mesmo campo de batalha. Acordos informais mantém a paz temporária.
O tempo ali passa mais devagar, decorrente do ar pesado, monótono, em permanente estado de tensão. Não se trata mais, como lamentava um monitor mais antigo, de recuperar ou desenvolver o indivíduo; significava somente passar um período de suas vidas (neste caso, para todos os envolvidos).
Como o local que visitava era considerado pelos gestores públicos uma unidade exemplar, todos os indivíduos ali registrados andavam devidamente uniformizados. A diferença é que não tinham nomes. Viravam números. E ai de quem quebrasse a regra da boa aparência. Imagem é tudo, dizia a cartilha emitida pelo governo.
Os indivíduos de bom comportamento – ou de bom relacionamento com a direção, que pode significar a mesma coisa – ganhavam regalias como recompensa. Conheci um deles durante a visita. Parecia um garoto de futuro. Vinha de família desestruturada, porém a mãe fazia questão de que ele se recuperasse a tempo de viver bem no mundo externo. Ela comparecia regularmente à unidade e cobrava providências da equipe diretora. Era vista como petulante e intrometida por muitos dos profissionais que trabalhavam ali. Quem era ela – na concepção deles – para criticar e dizer o que deveria ser feito, mesmo que tivesse razão.
O garoto fazia parte de um programa que incluía uma série de atividades extras, visando – na retórica da política pública – elevar a formação dele e assegurar que pudesse realmente sair dali com uma perspectiva de oportunidades no mercado de trabalho.
Ao conversar com minha amiga, no entanto, ficou claro que o programa não abria margem para a criação humana. Criatividade era um empecilho. O que valia era cumprir adequadamente as regras, manter a aparência, apresentar bom comportamento e – se possível – não pensar sobre o funcionamento do sistema. E jamais questioná-lo. Segundo uma das monitoras, aqueles indivíduos não tinham nada na cabeça. E repetia: cabeça vazia, oficina do diabo. Estavam ali para sair após prazo definido e – quem sabe? – mudar de instituição. Não seriam livres e – como bem frisou uma das integrantes da equipe diretiva – críticos, palavra excomungada do dicionário.
A filosofia que me foi apresentada se confirmava na agenda do dia. Tudo seguia a rigorosos horários: refeição, atividades físicas, visita ao pátio, encontro com familiares. É evidente que todas as tarefas – este era o nome usado de forma corriqueira – eram supervisionadas à risca. Falhas eram inadmissíveis. Punições, constantes. Contagens aconteciam várias vezes ao dia, durante as filas e entradas e saídas dos pavilhões. Em muitos casos, o diálogo se mostrava peça de ficção. A conversa caminhava na base de gritos, claro que oriundos de quem tinha mais poder.
Após um par de horas, minha amiga me acompanhou até a saída. Notou meu semblante decepcionado e assegurou que acreditava numa mudança. Que o local seria menos violento! Que os profissionais seriam melhor preparados para lidar com os jovens que ali estavam! Que era possível pressionar os políticos para implantar mudanças estruturais de longo prazo! E que, independente disso, faria o que fosse para alterar ao menos aquele micro-cosmo, aquela unidade que aprisionava pessoas!
Acredito nas palavras dela, mas saí de lá com a estranha sensação de ter ido ao endereço errado. Com a devida licença poética, ela trabalha numa escola.

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